A IDADE DO CEARÁ
Fortaleza em 1811
Barros
Alves
O sempre
deputado Heitor Férrer, a quem tive a honra de prestar assessoria durante cerca
de quinze anos, divulgou um vídeo conclamando o povo do Ceará para
comemorar a emancipação político administrativa do nosso Estado, no que fez
muito bem. Urge, nestes tempos de miséria da memória, resgatarmos datas, fatos
e personalidades importantes da nossa História. É certo que por decisão da
Rainha Maria I desvencilhamo-nos de Pernambuco em razão da Carta Régia datada
de 17 de janeiro de 1799. Porém, na condição de “advocatus diaboli”, fiz uma
ressalva ao vídeo que apresenta o dístico “Ceará – 225 anos”, ensejando a que o
receptor da mensagem pense que esta é a idade do Ceará. O Ceará, na verdade já
completou 420 anos de existência, em agosto do ano passado, posto que o nobre
açoriano Pero Coelho de Sousa, em demanda do Maranhão, aportou no “País do
Jaguaribe” em 1603, daí seguindo rumo à foz do Rio Siará. Sobre isto divergem
perifericamente alguns historiadores. Por outro lado, o que é pior, alguns
políticos vivem a mudar datas, institucionalmente, ao sabor dos poderes que
exercem de modo circunstancial. É o caso da equivocada data comemorativa do
aniversário de Fortaleza. Mas, isso são outros quinhentos.
O fato é
que quem primeiro pôs os pés nesta terra como capitão-mor de uma expedição
exploradora, criada com o fito mesmo de descobrir terras e delas se apossar,
juntamente com os seus bens, é claro, foi grande guerreiro Pero Coelho de
Sousa, experiente em batalhas de ultramares. O meu melhor padrinho nesta
definição de data chama-se Guilherme Chambly Studart, o Barão de Studart, um
homem extraordinário que deu inestimável colaboração para nossa história,
gastando tempo e pecúnia, em garimpar documentos sobre a formação do povo
cearense em arquivos existentes do outro lado do Atlântico. O Barão de Studart,
patrono da cadeira que ocupo na Academia Cearense de Literatura e Jornalismo,
mobilizou céus e terra para comemorar o tricentenário da independência do Ceará
em 1903, tomando por base do nosso descobrimento, portanto, a data em que aqui
aportou Pero Coelho de Sousa. O Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e
Antropológico), pelos seus preclaros sócios ao tempo das comemorações, deixou
significativo registro em tomo especial. O mais é narrativa especulativa para
encher compêndios.
Quero,
todavia, para o conhecimento dos meus leitores, referir-me à documentação que
nos concedeu a emancipação político-administrativa de Pernambuco. Lembrando que
antes havíamos pertencido ao Maranhão, o que em nada contribuiu para o
desenvolvimento da pequena gleba, tais as lamentações de Martim Soares Moreno
que, aliás, foi o primeiro a sugerir a mudança da tutela para o Pernambuco. O
Barão de Studart, à custa de muita dedicação, conseguiu amealhar um tesouro de
documentos, sem os quais pouco saberíamos sobre o descobrimento, conquista e
exploração das terras do Siará Grande. Muitos desses documentos foram
transcritos em várias edições da Revista do Instituto, em “Datas e Fatos para a
História do Ceará” e em “Notas para a História do Ceará”. Nestas
recolho a Carta Régia que proporcionou nossa emancipação. Transcrevo-a:
“Reverendo
Bispo de Pernambuco, do meu Conselho e mais Governadores Interinos da Capitania
de Pernambuco: Eu, a Rainha, vos envio muito saudar. Sendo-nos presente os
inconvenientes que se seguem tanto ao meu real serviço como ao bem dos povos da
inteira dependência e subordinação em que os governadores das Capitanias do
Ceará e da Paraíba se acham do Governador da Capitania de Pernambuco que pela
distância em que reside não pode dar com a devida prontidão as
providências necessárias para a melhor economia interior daquelas Capitanias
principalmente depois que elas têm aumentado em povoação, cultura e comércio:
Sou servida separa as duas Capitanias do Ceará e Paraíba da subordinação
imediata do Governo Geral de Pernambuco em tudo o que diz respeito a propostas
de Oficiais Militares, nomeações interinas de ofícios e outros atos de Governo;
ficando porém os Governadores das duas ditas Capitanias obrigados a executar as
ordens dos Governadores de Pernambuco no que for necessário para a defesa
interior e exterior das mesmas Capitanias e para a polícia e segurança interior
das mesmas: Igualmente determino que do Ceará e Paraíba se possa fazer um
comércio direito com o Reino para o que se estabelecerão em tempo e lugar
conveniente as casas de arrecadação que forem precisas e se darão outras
providências que a experiência mostrar serem mais úteis e adequadas para
facilitar e aumentar a comunicação imediata e o comércio das ditas duas
Capitanias com este Reino, o que vos participo para que assim o
fiqueis entendendo. Escrita no Palácio de Queluz aos dezessete de janeiro de
mil setecentos e noventa e nove. – O Príncipe. Para o Bispo de Pernambuco e
mais governadores interinos da mesma Capitania.” Note-se que a
decisão oficial da Rainha foi assinada pelo Príncipe Regente Dom João.
Bernardo
Manuel de Vasconcelos foi designado primeiro governador do Ceará. Este
desconhecido da maioria, só há poucos anos foi lembrado pelo poder público que
em sua homenagem nomeou avenida de Fortaleza, via que começa no viaduto da
Avenida Carlos Jereissati (Aeroporto Pinto Martins) e segue até o Bairro
Prefeito José Walter. A Rainha remeteu a Carta Régia ao escolhido juntamente
com a missiva que segue:
“Bernardo
Manuel de Vasconcelos, chefe de Esquadra da minha Armada Real e Governador da
Capitania do Ceará: Eu a Rainha vos envio muito saudar. Pela Carta Régia de que
achareis junto à cópia fui servida separa a Capitania do Ceará da imediata
subordinação, em que se achava do Governo Geral de Pernambuco com as limitações
ali apontadas: O que me pareceu participar-vos para vossa inteligência
esperando que esta mais ampla jurisdição, que vos confio, vos dará
uma maior facilidade para promover todos os objetos de utilidade pública e para
vos empregardes com a maior eficácia e zelo em tudo o que puder concorrer para
a felicidade desses povos. Escrita no Palácio de Queluz aos dezessete de
janeiro de mil setecentos e noventa e nove. – O Príncipe.”
Somente a
23 de maio de 1799 o governador designado deixa Lisboa. Demora-se em Recife,
onde aportara em agosto, e só chega ao Ceará em 25 de setembro, tomando posse a
28 daquele mês. Sabe-se que dentro de suas limitações e competências, Bernardo
Manuel de Vasconcelos se houve com aprumo e realizou um bom trabalho como
administrador da Capitania do Ceará.
Lembre-se,
a título de curiosidade, que Fortaleza no início do século XIX não passava de
uma pequena vila. Centros cheios de vida e desenvolvimento, consoante o relato
do próprio Governador, eram Santa Cruz do Aracati, Sobral e Granja. Esta,
naqueles dias, tinha “um grande comércio de carnes e algodão, que atrai pelo
seu cômodo muitas embarcações e traficantes de Capitanias circunvizinhas, vila
tão celebrada na história do Padre Vieira, pela pesca, que nela havia do coral
e âmbar-gris.” Bernardo de Vasconcelos dá uma ideia do acanhamento de
Fortaleza, que passava a ser a capital da Capitania: “É de menor extensão e
povoação a Vila da Fortaleza onde reside o governador e se acha acantonada uma
única companhia de tropa paga, que guarnece a Fortaleza da Assunção
estabelecida nas praias do oceano. O mesmo se observa na Vila do Aquiraz,
cabeça de Comarca, e residência do ouvidor-geral, aonde os jesuítas tinham o
seu colégio.” Bernardo Manuel de Vasconcelos governou o Ceará até 8 de novembro
de 1802.
O resgate
dessas datas e fatos deve ser feito não apenas por diletantismo, mas sobretudo
e necessariamente como um objeto de reflexão para as atuais gerações, as quais
podem fazer comparações ao observarem o comportamento dos homens e o processo
de desenvolvimento dos lugares que governaram. Um caso que se presta ao estudo
e análise o de Granja, que nos inícios tinha tudo para ser pujante, mas
estacionou no tempo. Um caso a ser investigado por historiadores e
sociólogos.
LITERLEITURA - BARROS ALVES
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