quinta-feira, julho 09, 2015

VIEIRA: QUEM NÃO LEU AINDA

QUE  O  FAÇA  LOGO!

Padre Vieira na Ibiapaba

Padre Antonio Vieira, o nosso monumental escritor, esteve no Ceará em 1660, e isso é uma preciosidade histórica para nós. Também uma preciosidade literária, pois ele nos deixou um texto, a “Relação da Missão da Serra de Ibiapaba”. Faz parte de seus escritos instrumentais, que ele chamava de cabanas em comparação aos seus textos proféticos, os palácios altíssimos. Mas refulge toda a beleza barroca de sua voz. Vale a pena transcrever pelo menos um trecho: “Ibiapaba, que na língua dos naturais quer dizer Terra Talha, não é só uma serra, como vulgarmente se chama, senão muitas serras juntas, que se levantaram ao sertão das praias de Camuci, e mais parecidas a ondas de mar alterado que a montes, se vão sucedendo, e como encapelando umas após das outras...: são todas formadas de um só rochedo duríssimo, e em partes escalvado e medonho, em outras cobertas de verdura e terra lavradia, como se a natureza retratasse nestes negros penhascos a condição de seus habitadores, que, sendo sempre duros e como de pedras, às vezes dão esperanças, e se deixam cultivar”. Esse texto de Vieira eu li e reli umas dezenas de vezes, e sonho escrever algo sobre as missões na serra de Ibiapaba. Foi comovente alcançar a serra, olhar pela primeira vez a altura das pedras, as distâncias e tons que ela abrangia, como se eu mesma tivesse andado ali com o padre Vieira.

Estive estes dias na serra pela segunda vez, na gentil e arborizada cidade de Ipu, de onde se avistaa Ibiapaba bem de perto. A cidade fica aos seus pés, e a serra vista dali é uma muralha de pedra, dando a impressão de que um dia aterra desabou, formando um degrau monumental. Mas, estranhamente, não nos oprime, ela tem uma delicadeza inesperada, na sua existência entre a mata verde e o céu azul suave. Reforça a ideia de delicadeza uma queda d’água fina em seu seio, a água fica bailando ao vento, o fio prateado se desfaz em fumos e véus e volta a ser fio prateado. Vieira não viu a serra desse ponto de vista, nem se banhou no tanque fresco da bica de Ipu, como Iracema. Passou por onde hoje ficam a cidade que tem seu nome, Viçosa e Tianguá.

Viajando no conforto do carro, parando para um belo café da manhã com neblina e um almoço no cume da montanha, admirei a serra pelo lado de Vieira, e vi, parece mesmo um mar azul encapelado. Fiquei imaginando como foi árdua a viagem de Vieira, a pé, descalço. Ele saiu do Maranhão acompanhado de dois jesuítas e cerca de trinta índios. Viajaram por mais de cento e trinta léguas,primeiro pelas praias, rodeando as enseadas, vencendo lençóis de areia, num caminho repleto de bravios tapuias, sem uma só povoação ou estalagem. Os índios levavam às costas o parco mantimento composto apenas de farinha de guerra, que comiam com um peixe, um caranguejo ou uma ave abatida. Levavam canoas que usavam para cruzar rios caudalosos, pela foz. Os barcos iam pelo mar,no auge das ondas, com muito perigo,às vezes ficavam alagados, às vezes eram jogados com força, quebrando-se ou lançando os tripulantes na água.Às vezes era preciso arrastar os barcos por longos trechos de terra, para alcançar a praia adiante. Os índios então levavam os barcos às costas, e Vieira diz como era trabalhoso convencê-los a seguir, passando fome e extenuados. Viajavam sem abrigo do sol ardente, picados e desatinados por enxames de mosquitos, sem encontrar uma só árvore, sem lenha para o fogo da comida, a não ser uns tocos secos que as ondas haviam lançado na praia. Dormiam na areia, e após noites de ventania acordavam de manhã quase soterrados. O vento forte parecia ser o maior obstáculo. Vieira viajou no mês de março, tempo de inverno, mas pouco choveu. Mesmo caminhando com pressa, muitas vezes noite adentro, a fim de chegar a tempo para a Semana Santa, os missionários demoraram vinte e um dias.

Gastei as minhas lágrimas na adolescência, quando chorava aos jorros e por um motivo qualquer. Mas páginas de poesia ou prosa ainda me arrancam lágrimas. Como Fernando Pessoa, chorei quando li padre Vieira pela primeira vez, e até hoje me escapam umas tímidas lágrimas diante daqueles movimentos hieráticos da nossa “clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive...” E me lembro muito bem quando li pela primeira vez, lá pelos anos oitenta, as palavras do padre Vieira contando sobre sua vinda ao Ceará. Meu coração bateu feito um pilão, as palavras eram um quase tocar de sua mão vinda lá do céu em meus cabelos.

ANA MIRANDA é escritora cearense. Autora de Boca do Inferno (1989), Desmundo (1996), Amrik (1997), entre outros. 
fonte:  O POVO,  visita 9/07  14:08

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