A saga de dois índios brasileiros
A saga de dois índios brasileiros
Zuza Homem de Mello
Zuza Homem de Mello
Nem bem acabou de ouvir a faixa de "Maria Elena", Mike Camite exclamou baixinho para si próprio: "That's it!" (é essa!). Produtor do programa matinal de humor "Klavan and Finch" na emissora WNEW, Camite buscava em algum LP antigo um tema para ser usado como vinheta. Vários trechos daquela gravação dos Índios Tabajaras se prestavam lindamente para o que pretendia. Inserida no programa, a velha melodia passou a ser ouvida diariamente por uma grande audiência em Nova York a partir daquele meio do ano de 1963. Com a sonoridade gemida de um violão que lembrava uma guitarra havaiana, a melodia grude/romântico que mexia com o sentimentalismo caiu no gosto dos ouvintes, provocando centenas de cartas, que se amontoavam, pedindo informações sobre o disco. Ainda sem acreditar muito, a gravadora abriu os olhos e revirou seu catálogo ao vislumbrar um hit.
O LP fora gravado em 1957 e a RCA tratou de aproveitar a maré relançando "Sweet and Savage", que vendeu 5 mil exemplares logo de cara e, com o tempo, chegaria próximo da marca do milhão. Os Índios Tabajaras, uns "brazilians" que ninguém sabia onde tinham se metido, precisavam ser localizados rapidamente, a todo custo, para gravar disco novo. Assim, quase por acaso, a canção mexicana "Maria Elena" viveu seu segundo ciclo de sucesso. A gravação esquecida chegou a ficar 14 semanas no "hit parade" americano, em que atingiu o sexto lugar, bem como o terceiro na lista da revista "Billboard" e alcançou quase 500 mil discos vendidos entre Inglaterra e Itália. Quem mais fazia sucesso em 1963 nos EUA, concorrendo com aquela simplória versão do duo de violões, uns indígenas desconhecidos? Apenas "Surfin' USA" dos Beach Boys; "She Loves You", "Twist and Shout" e "I Want to Hold your Hand", dos Beatles; "If I Had a Hammer", com Trini Lopez; "Days of Wine and Roses", com Andy Williams.
"Maria Elena" ("Tuyo Es Mi Corazón") foi composta pelo mexicano Lorenzo Barcelata (1898-1943) em 1932. É uma elegia de amor à mulher que idealizou como "...eres mi fé, mi diós, mi amor". Ninguém menos a quem a canção foi diplomaticamente dedicada: a senhora Maria Elena Torres Espinel, mulher do presidente Emilio Portes Gil. Gravada pelos Hermanos Castillas e incluída no filme mexicano, "Maria Elena" também podia ser ouvida, em 1935, na trilha de "Bordertown", com Bette Davis e Paul Muni. Foi o estopim para ser gravada por orquestras e cantores americanos. A letra em inglês foi feita por Bob Russell, habituado a faturar alto em versões, como a que fizera para o bolero "Frenesi" e a que faria para "Aquarela do Brasil".
Nos EUA, "Maria Elena" era destinada à melosa orquestra de Lawrence Welk, mas quem de fato fez algum sucesso nesse ano de 1941 foi o bonitão Bob Eberly, "crooner" na "big band" do clarinetista Jimmy Dorsey, abrindo o caminho para numerosas interpretações. A que ficou mais conhecida no Brasil foi em castelhano, com o insuperável Nat King Cole no disco de 1958 "Cole Español Canta Boleros". Esse foi o LP que estendeu tapete vermelho para sua fama na América Latina, consagrando-o em definitivo durante a lendária temporada de uma semana, no Teatro Paramount de São Paulo, como uma das primeiras atrações internacionais da TV Record.
Com o "H" no início de Elena, a composição de Barcelata teve sua versão em português feita pelo experiente Haroldo Barbosa, para ser gravada, em julho de 1942, pelo cantor Francisco Alves. Mas a sonoridade que encantou o mundo, sendo depois imitada fartamente, foi a desse duo de violonistas, praticamente uns joões-ninguém no país onde nasceram e viveram boa parte da vida. Os Índios Tabajaras são personagens de uma verdadeira saga na música.
"Maria Elena" fora gravada nos estúdios da RCA em Nova York por dois índios de verdade que viveram nas selvas brasileiras sem contato com a civilização até os 15 anos. Por serem o terceiro e quarto irmãos de uma família descendente da tribo dos tabajaras, na serra de Ibiapaba, divisa do Ceará com o Piauí, receberam, como mandava a lógica tupi, nomes que indicavam suas posições cronológicas no conjunto de 14 filhos do cacique Ubajara: Mussaperê e Herundy.
Em 1933, ambos decidiram deixar a tribo, empreendendo uma aventura maluca que duraria três anos: conhecer o Rio. Inicialmente no Cariri, foram batizados com nomes cristãos Antenor e Natalicio Moreira Lima, respectivamente, sob a orientação do tenente Hildebrando Moreira Lima, membro de um destacamento que, no contato com o núcleo indígena em seu hábitat, deixou os irmãos seduzidos quando ouviram violão pela primeira vez. Caçando e pescando para sobreviver na viagem a pé, encontraram no caminho um violão abandonado, depois uma viola velha e, por conta própria, foram aprendendo a manusear os instrumentos, tocando em feiras do Nordeste em troca do que sequer sabiam da existência: dinheiro. Com ajuda do governador da Bahia, chegaram ao Rio de navio, em 1937.
Por cinco anos conseguiram sobreviver em circos e feiras fluminenses, entoando cânticos que conheciam e se acompanhando rudimentarmente ao tempo em que renegavam sua origem indígena por temer que pudessem ser presos e mortos. Pois foi justamente essa a exigência que lhes fez o apresentador Paulo Roberto, da Rádio Cruzeiro do Sul, para que pudessem ser contratados pela emissora: os dois irmãos deveriam se apresentar como índios mesmo, trajando cocares de penas e dedilhando seus instrumentos no estilo simples e emotivo que aprenderam sozinhos. Já alfabetizados, Os Índios Tabajaras passaram a ser uma atração exótica nos cassinos brasileiros, foram contratados pela RCA e, a partir de 1944, atuaram em países da América Latina, chegando ao México.
Mais sagaz dos irmãos, o solista Natalicio começou a aprender música clássica tocando de ouvido peças de Chopin, Mozart e Liszt. Inventivo e ousado, fabricou um instrumento com 26 trastes para obter notas mais agudas e manteve seu estilo calcado num vibrato que soava como se plugado no "reverb" de um violão eletrificado. Em seguida vieram convites para espetáculos na Europa, provocando maior abrangência e variedade no repertório. Ao retornar, enfrentaram a frustração de continuar praticamente ignorados em seu país. Nos poucos discos gravados, apenas um relativo sucesso em 1954 com "Pássaro Campana", do folclore paraguaio, em adaptação de Nato, o Natalicio.
A decepção de uma carreira brasileira comparada com a do exterior incentivou-os a viajar novamente. Em Nova York, foram levados pelo produtor Herman Diaz Jr. a gravar seu primeiro LP, sem repercussão alguma, apesar de promovidos em televisão, inclusive no "Ed Sullivan Show". A primeira faixa era "Maria Elena". Desanimados também nos EUA, desistiram da carreira. Em 1960 retornaram ao Brasil e foram morar em um sítio em Araruama, afastado 100 km da vida artística carioca.
Quando os representantes da RCA brasileira, intimados pelo desespero da matriz americana, conseguiram localizá-los na sua pacata vida de sitiantes, apressando-os a embarcar para Nova York a fim de gravar novos discos, os dois irmãos não conseguiram acreditar. E era verdade. Comendo caviar em um dos melhores hotéis de Manhattan, os índios receberam um cheque de US$ 70 mil e logo entraram novamente em estúdio. Retomaram a carreira, porém, numa roda-viva e bem diferente. De 1964 em diante, Os Índios Tabajaras foram tratados como superstars internacionais.
Gravaram muito mais, chegando a ter mais de 20 LPs em catálogo, contendo standards americanos, internacionais e poucos temas brasileiros, nem sempre com as harmonias corretas ("Moonlight Serenade", "Stardust" e "Cariñoso"). Eram convidados frequentes para o "talk show" de Johnny Carson na televisão; apresentaram-se em palcos da Europa e do Japão com vestimentas de índio, em repertório folclórico, e a rigor nos concertos, em que, por vezes, eram acompanhados por orquestras sinfônicas. Tocaram Chopin e o velocíssimo "Hora Staccato" no Alice Town Hall do Lincoln Center e tinham ainda esse retrospecto inacreditável para preencher as espantosas entrevistas em inglês de Nato, que, além de ter procurado estudar música clássica, falava cinco línguas.
Após o casamento com a pianista japonesa Michiko Mikami, que, em 1979, ocupou a posição do parceiro Antenor, já cansado de tanto viajar, Nato estabeleceu-se em Nova York, mas ainda cheio de planos com a combinação do novo duo, violão e piano. O capítulo final dessa novela, cuja trilha musical só pode ser "Maria Elena", se passa em Londres em junho de 2003 e não está escrito em nenhuma das numerosas reportagens sobre Os Índios Tabajaras, incluindo a do "New York Times", em 1981, e as de sites brasileiros. Encantado com a sonoridade que ouviu num CD da premiada violonista canadense Amanda Cook, gravado numa igreja, Nato contatou o engenheiro de som responsável, John Taylor, desejoso por gravar novas composições em violão solo, o que ainda não havia feito. Fez questão que a gravação fosse na mesma igreja de St. Thomas em Pagham, próxima de Sussex, no oeste da Inglaterra.
Concluídos os detalhes, Taylor apanhou o casal Nato e Michiko no hotel de Londres para a viagem daquela mesma tarde a Pagham. Nada foi gravado na sessão do primeiro dia, pois Nato preferia, sem nenhuma pressa, alongar-se em descrever as peripécias de seu passado.
Na manhã seguinte, após exercitar-se ao violão por uma hora, decidiu gravar apenas uma peça rápida depois do almoço, num pub próximo. No terceiro dia, gravou três peças ("Blue Yonder", de sua autoria, e mais duas composições de seu amigo guitarrista americano Jimmy Staff), num total de sete a oito minutos de música. Insuficiente para um CD, mas estranhamente o bastante para satisfazer o violonista. Mesmo aos 85 anos, Nato conseguia executar com certa rapidez passagens difíceis que haviam deslumbrado plateias e conservava o impressionante vibrato ao violão usando dois dedos nos intervalos de terças ou sextas.
Retornando a Londres com esse parco material, Nato e Michiko jantaram com a violonista Amanda na casa dos Taylor, John e sua mulher, Judy. Nato e Amanda tocaram violão e, no dia seguinte, regressaram a Nova York. Provavelmente essas foram as últimas gravações de Natalicio Moreira Lima, que iria morrer em novembro de 2009, em Nova York. Seu destino? A resposta pode vir um dia, em sintonia com a saga desses fenômenos, Os Índios Tabajaras. Reverenciados no mundo, menos no Brasil.
02/01/2015
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