Sem querer querendo ( como diz o Chaves ), olha só, caro leitornauta, o que encontrei. É a cara da cidade de Ubajara em outras épocas não tão distantes, quando ainda o nome da vila era JACARÉ. É um conto de ninguém menos que RAIMUNDO MAGALHÃES JÚNIOR que recebeu o título de Lobisomem. Está na http://www.biblio.com.br/.
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Raymundo Magalhães
O LOBISOMEM
A primeira bodega que se abria, na feira do Jacaré,
era a de seu Bento. Logo muito cedo, mal o dia começava a raiar, ele
saía de casa, embrulhado num cobertor de lã, por causa do frio cortante,
escancarava as duas portas da frente, ia à ancoreta de cachaça pousada em cima do balcão, tomava um tronco, para esquentar o corpo e ficava, por algum tempo, passeando dentro do quarto, à
espera dos primeiros fregueses. Estes não demoravam a chegar. Eram, de
ordinário, os mesmos: seu Valdivino, marchante, dono do açougue
vizinho, conversador inesgotável e cacete, depois da terceira golada; o
capitão Mosqueiro, espírito alegre e vivo, grande contador de anedotas
picantes, que, apesar de muito repetidas, arrancavam formidáveis
gargalhadas; seu Doca, o mais moço de todos, prosador e poeta, que
assombrava a terra com os seus violentos artigos políticos nos jornais
da capital e já era uma celebridade consagrada pelo Almanaque de Lembranças... Tivera
estudos. Toda a gente o considerava um moço preparado. Fazia graça de
um grosseiro materialismo e, de vez em quando, atracava-se em polêmica
com o vigário da freguesia, um santo homem, que tomava a peito converter
o herege... Só mais tarde chegavam o Baé, o Januário, o Zé
Preto, o velho Macedo, o Caboquim, e outros negociantes das imediações,
que formavam uma grande roda, aplicada, toda a manhã, até à hora do
almoço, a beber copinhos de cachaça e a falar da vida alheia...
Quando seu Bento abria a porta, vinha de dentro do quarto um
bafo morno, nauseante complexo, em que se misturava o cheiro de mil
coisas heterogêneas: sardinhas secas, jacas, rapaduras, fumo de corda,
álcool, drogas, plantas medicinais, queijos, alhos e cebolas brancas,
bananas, atas, avoantes. . . Além de negociante de gêneros alimentícios, seu Bento
era também muito entendido em assuntos de medicina caseira. Como na
terra não havia médico nem boticário, ele desempenhava o papel de curioso: com
o auxilio do seu bojudo Chernoviz, aconselhava remédios a quantos
recorriam à sua experiência, e dizia-se que estava só para tratar das doenças do mundo... Jalapa
para estes, batata para aqueles outros, eram os seus remédios
prediletos. Se não fizessem bem, não podiam fazer mal. Custavam pouco,
mas esse pouco lhe bastava para ir vivendo folgadamente, em meio à sua
vasta clientela.
Seu Bento era um belo tipo de homem, muito
branco, de nariz aquilino, com uma barba cerrada e longa, cujas pontas
tinha o hábito de retorcer, com arrogância. Andava pelos setenta anos,
mas estava forte, esperando viver, pelo menos, o dobro... Extremamente
desasseado, sempre de corrimboque em punho, a fungar pitadas de
tabaco, com um enorme lenço de ganga sobre um dos ombros, era uma figura
pitoresca pelo seu modo de vestir. Quer de verão, quer de inverno,
calçava tamancos e o seu traje compunha-se de uma calça de riscado e de
uma camisa de madapolão com as fraldas soltas que lhe alcançavam os
joelhos. Nada neste mundo o obrigaria a passar os panos ou a enfiar um paletó. Ia
assim a toda parte, à igreja como ao mercado, e, mesmo quando se faziam
eleições, era em fralda de camisa que dava o seu voto ao governo.
Certa manhã, ainda com escuro, estava a rodinha formada, uns sentados no balcão, outros em caixas vazias de gás. Era
em junho. Fazia um frio de bater o queixo. A cachaça corria com mais
abundância e a palestra aumentava de animação, à medida que os copinhos
se repetiam. A neve, como lá se chama a cerração, era tão
espessa que não deixava ver nada a vinte metros de distância. Por isso,
ninguém reparou na chegada do Zé Vicente, um lavrador de Pavuna, senão
quando ele, depois de ter amarrado o cavalo à gameleira da porta, entrou
na bodega, muito maneiroso, dando os bons dias e apertando a mão de
cada um.
Seu Bento quis saber logo que novidade era aquela, porque aparecia ele assim de madrugada. Haveria doença em casa?
- Foi a mulher que quebrou o resguardo - explicou o
Zê Vicente. Teve criança há três dias e estava passando muito bem,
quando, ontem de noite, aconteceu uma desgraça...
- Que foi? que foi? - perguntaram todos ao mesmo tempo.
- Acho que foi um lobisomem. Pela meia-noite,
ouvimos um bicho rosnar e arranhar a porta do quintal com muita força. A
cachorrinha, parida de novo, deu logo sinal do lado de dentro e o bicho
largou um grunhido que nos encheu de pavor. Talvez seja um guaxinim,
disse eu à mulher. Quis-me levantar, sair fora, para ver que marmota era aquela, mas a Maria não deixou. Depois, mais nada. A Baleia calou-se.
Pegamos no sono e, hoje de manhã, ao despertar, verificamos que à
porta dos fundos estava aberta e o bicho havia comido a ninhada de
cachorrinhos que estava na cozinha. A Maria jura que foi um lobisomem.
Eu também acho que sim. O certo é que a pobrezinha tomou um susto
medonho, quebrou o resguardo e, agora, está para morrer.
Seu Bento consolou o pobre homem sobre cujo lar desabava uma tamanha calamidade:
- Isso não é nada, Zê Vicente. Dá-se um jeito. Tenha coragem e fé em Deus.
Consultou demoradamente o Chernoviz:
- O remédio é um purgante de Leroy ou então Água Inglesa. Leve o laruá (era assim que ele pronunciava) leve o laruá e venha me dizer, amanhã, se a mulher melhorou.
Ninguém se atrevia a interromper seu Bento, quando ele tratava de medicina. Quem o fizesse, imprudentemente, podia ter a certeza de que o velho curioso esmagá-lo-ia
com um olhar colérico e com esta simples apóstrofe - Filho!... Filho,
apenas. Não dizia de quem mas todos sabiam o verdadeiro sentido daquele
palavrão...
Zé Vicente guardou o remédio, pagou-o, despediu-se
dos circunstantes e partiu a galope. Tomou-se mais uma rodada e os
comentários, então, esfuziaram (...) fonte: www.biblio.com.br.
mecostarte arteforall
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