quinta-feira, novembro 19, 2020

DO DISCURSO DE POSSE DE MAGALHÃES JÚNIOR na ABL. ( extrato )

 AMBIÇÃO DE GRANDEZA

Disse acolhendo, porque fui eu que vim ao vosso encontro e bati, não uma, mas duas vezes à vossa porta. E por que bati? Por que ousei tanto? Eu mentiria se não dissesse que era porque aspirava ao vosso convívio cordial e afetuoso, e queria ter a medida da vossa estima, expressa nos vossos sufrágios. Não é outra coisa o que têm buscado entre vós os que aqui me antecederam, inclusive os homens de Estado, a quem não bastavam os triunfos colhidos na tribuna parlamentar e nos altos postos de governo.

(...)  

O CEARÁ E A ACADEMIA

Não quero deixar de assinalar com emoção a circunstância de que, há mais de três decênios, não ingressava nesta Casa um representante de minha província, o Ceará, representado, na fundação desta Casa ilustre por figuras como Araripe Júnior, Clóvis Beviláqua e Heráclito Graça, sobre ter em José de Alencar e Franklin Távora dois de seus patronos. Faz exatamente 33 anos que aqui ingressou o Sr. Gustavo Barroso, o erudito folclorista da Terra de Sol e Ao Som da Viola, o admirável contista de A Ronda dos Séculos, o historiador ilustre das nossas campanhas militares, a quem a condição de adversário político jamais tolheu a admiração intelectual e a amizade que há tantos anos lhe tributo. Sou o quinto filho do Ceará a ingressar nesta Casa –, não, porém, porque lhe tenham faltado figuras capazes de alcançar, pelo seu merecimento, o lugar que entre vós alcancei pela vossa bondade. Domingos Olímpio, o autor de Luzia-Homem, esteve no limiar da Academia, quando de sua fundação, e depois, duas vezes candidato, não logrou ser eleito, como seria de justiça. Se há alguns adversários que facilitam eleições, há outros que fulminam e sideram os concorrentes. Uma vez, teve o romancista cearense de se defrontar com a figura impressionante de Euclides da Cunha, a que ninguém poderia disputar a precedência. E da outra vez preponderou a mocidade e a simpatia de Mário de Alencar, ainda longe de ter realizado a obra literária que veio a produzir. Farias Brito, de não menor merecimento, tentou suceder ao cearense Heráclito Graça, e teríeis então tido um filósofo no lugar de um gramático. Mas a timidez de Farias Brito levou-o a recuar da primeira investida, e o recuo enfraqueceu - lhe a candidatura quando a renovou na vaga de Sílvio Romero. Além destes, outros houve, que poderiam ter aqui chegado, como Rodolfo Teófilo, Papi Júnior, Antônio Sales e Leonardo Mota. Foram, porém, homens desligados da metrópole intelectual do País, e mesmo Antônio Sales, poeta e romancista, que militou na imprensa do Rio de Janeiro e nela se distinguiu ao ponto de entreter polêmica com João Ribeiro, cedo se retirou para a terra natal e ficou praticamente esquecido. Nomeando alguns dos vultos das Letras cearenses que poderiam ter com mais direito do que eu aspirado à Academia, não lhes quero simplesmente reverenciar a memória, e, embora esta Casa não tenha preconceitos regionalistas, desejo afirmar que aqui me sinto menos como um legítimo detentor desta Cadeira que como uma espécie de curador de ausentes...

O GOSTO DOS CONTRASTES

Rara e espaçada é a nossa vinda a esta Casa, porque não apenas exigis que medeie a idade de Cristo entre a eleição de um e outro cearense, como ainda nos aplicais uma cláusula singularíssima: por tradição que se firmou na vaga de D. Silvérlo Gomes Pimenta, quando da eleição do eminente Sr. Gustavo Barroso e se confirmou agora na de D. Aquino, só nos pode caber a vaga de um acadêmico arcebispo. O que me deu esperanças ao apresentar a minha candidatura à vaga deste ilustre antístite foi saber que esta Academia tem, por vezes, o gosto dos contrastes e das soluções inesperadas. Lembro-me de que, quando se deu a vaga de Alcindo Guanabara, considerado o grande jornalista da República, a qualquer homem da imprensa, e muitos, sem dúvida, haveria, no rol dos possíveis candidatos, preferistes as virtudes sacerdotais e a velhice do arcebispo de Mariana. Este era uma glória da igreja pela cultura, pela fé, pela piedade, pelo zelo e intransigência de seu apostolado. De Alcindo Guanabara, servidor da política de Campos Sales e, por fim, da de Pinheiro Machado, dizia-se, porém, que tinha convicções para as ocasiões e que não tinha ocasião para as convicções. Já aqui foi narrada maliciosa anedota preparada para demonstrá-lo. Anedota improvável, sem dúvida, e já contestada com boas razões, mas nem por isso menos expressiva. É que lhe encomendara a direção do Jornal do Commercio um artigo sobre Cristo para uma sexta-feira da Paixão. Acertada a retribuição e o dia da entrega, Alcindo Guanabara, pela força do hábito, teria interrogado: “E esse artigo sobre Cristo, é a favor, ou contra?” O dente agudo da sátira mordia o jornalista que, amigo de José do Patrocínio, tirado por este da obscuridade, com ele rompera todos os vínculos para se converter no mais acirrado adversário da Abolição, nas colunas escravagistas e conservadoras do Novidades... Talvez por isso mesmo D. Silvério Gomes Pimenta, ao ser recebido nesta Casa, declarou que sabia que o seu discurso ia ser objeto de grande curiosidade, pois todos queriam ver como se sairia fazendo o elogio de um herege. Mas o sutil arcebispo, com as galas de sua inteligência e a sua capacidade de espargir indulgências, garimpou os escritos de Alcindo Guanabara e deles extraiu algumas frases que lhe bastaram para que o proclamasse um espírito voltado para Deus...

No caso presente teríamos uma inversão daquele espetáculo: é ao herege que cabe a tarefa de fazer o elogio de uma figura eminente do clero. Mas o meu estado de perplexidade é tal que nem mesmo saberei dizer se sou de fato herege, embora, em sã consciência, não possa nem queira afirmar que sou católico. O que alivia um pouco os meus escrúpulos de sucessor de um arcebispo é que costumam teimar comigo, assegurando-me que o sou, alguns dos meus amigos padres, e até um bispo e um arcebispo que me honram com sua nobre estima. É uma forma que têm de preservar a nossa amizade encurtando generosamente as distâncias que poderiam separar-nos. Insistem em julgar-me não pelas minhas palavras, de negativa, mas pelos meus atos, que supõem ter uma expressão afirmativa. Um deles chegou a um requinte dialético, que não me furtarei a citar.

Sustenta que os verdadeiros católicos não são aqueles que assim se proclamam através de palavras logo desmentidas por seus próprios atos, e sim aqueles que, mesmo afirmando o contrário, revelam, pela sua forma de proceder, um espírito verdadeiramente cristão. Enquadrados por uma lógica tão férrea, teremos que nos render e admitir que o Brasil é um País essencialmente católico, pois que sua população há de estar praticamente dividida, não posso dizer em que proporção, entre católicos de confissões e católicos de ações. Espantará a alguém tal conclusão? Pois se até o genial e louco adolescente Arthur Rimbaud que preseguia os padres com ditérios da maior impertinência, e escrevia “Morte a Deus!” nos muros das igrejas, foi postumamente declarado um crente! A Claude Edmonde Magny tudo isto se apresentava como atos de fé indiscutíveis. E escreveu: On ne cherche à profaner que ce quon tient pour sacré. Tenho, para mim, que a universalidade da Igreja vem da disposição cordial com que aceita como provas de fé ao mesmo tempo a compunção e a blasfêmia.

O PADRE SOUSA CALDAS

E não estará certa nisto? E haverá caso que melhor o demonstre do que o do patrono da Cadeira 34. O padre Antônio Pereira de Sousa Caldas? Perseguido como incréu pelo Tribunal do Santo Ofício, não chegaria a ser uma das mais altas glórias da Igreja? Teve um destino singular este brasileiro educado em Portugal. Era tão precoce e tão apegado aos estudos que ingressou na Universidade de Coimbra com permissão especial, pois lhe faltavam ainda três anos para alcançar a idade mínima, exigida aos matriculados. Soprava então da França o vento das idéias novas, e os enciclopedistas preparavam, com a letra impressa, a derrocada do Absolutismo. O ano do nascimento de Sousa Caldas – 1762 – era o mesmo em que Jean-Jacques Rousseau publicara o Contrato Social, era o mesmo em que Émile, ou le Traité d’Education era banido na França por suas idéias manifestamente antimonarquistas. Sua juventude, seu período universitário, coincidia com o crepitar das reivindicações que, dentro em pouco, sobre os escombros da Bastilha e os despojos da realeza, iriam estabelecer os Direitos do Homem. Voltaire, D’Alembert, Diderot, Rousseau eram os nomes que seduziam as imaginações moças e atrevidas. Até Coimbra chegou o eco desse tumulto de idéias, desse rumor ainda confuso que preparava um mundo novo... E era o jovem universitário coimbrão tão ousado nas idéias e tão franco na maneira de enunciá-las que, acusado de ser pedreiro-livre, o Tribunal do Santo Ofício resolveu honrá-lo com suas atenções, ordenando-lhe a prisão. O tio, sob cuja guarda se encontrava, obteve para ele a proteção do governo, sob a condição de encerrálo, por seis meses, no Convento de Rilhafoles, onde, para curar-se da heresia, devia fazer exercícios piedosos em companhia dos frades. O que há de extraordinário é que o estudante perseguido tão bem se deu no meio deles que só por muita insistência da família terminou os estudos de Direito em Coimbra. Doutorado, rejeitou o cargo de juiz de fora no Brasil, e nem os vários meses que permaneceu em Paris e em Lisboa, já depois de formado, lhe amorteceram o impulso para a vida religiosa. Uma vez maior, dirigiu-se a Roma e ali obteve ordens sacras. Queria ser padre, nada mais que padre. Veio para o Rio de Janeiro, onde se tornou famoso pela eloqüência e cultura. Várias vezes foi-lhe oferecida a dignidade episcopal, mas sempre a recusou, não querendo ser bispo.

UM SERMÃO FAMOSO

O orador sacro Sousa Caldas era de tal modo eloqüente, tão imaginoso, tão torrencial, tão fluente, que poderia falar duas, três, quatro horas seguidas, com encanto geral dos ouvintes sobre o mais simples de todos os assuntos. A respeito desse dom extraordinário conta-se que, certa vez, estava pregando na Igreja de Santa Rita, quando outro sacerdote teve de sair com o Santíssimo, para atender a um doente em artigo de morte. O doente morava nos confins da Gamboa e o outro padre para lá se fora a pé, acompanhando a pessoa que trouxera o chamado. Como seria longa a demora, Sousa Caldas teria que continuar a prédica até o momento de seu regresso... Após esgotar o tema do Evangelho sobre o qual falava, Sousa Caudas entrou a discorrer sobre a Eucaristia. E falava, falava, falava... Falava com tão persuasiva eloqüência, com tal beleza de expressão, que quando o viático voltou, mais de duas horas depois, estava ele ainda a falar, sem que os ouvintes se tivessem dado conta do tempo decorrido. “Parecia Inspirado”, dizia dele o cônego Januário da Cunha Barbosa, “parecia inspirado por um poder sobrenatural”.

POESIA DAS BOAS AÇÕES

Pois este Bossuet brasileiro tinha o condão de reunir à eloqüência de grande pregador a humanidade de um frade mendicante, aos arroubos de um grande tribuno a simplicidade de um carmelita descalço. Não fazia o menor caso dos bens materiais e o dinheiro que lhe vinha às mãos logo delas saía, repartido com os pobres. Narra-se que, um dia, no Passeio Público, conversava com alguns amigos, quando um mendigo em andrajos deles se acercou. Sousa Caldas não tinha dinheiro algum no bolso da batina. Mas seguiu o pedinte, notando depois os amigos, ao regressar, que não mais trazia nos sapatos as fivelas de prata, antigamente de uso. Como sua oratória, sua Poesia era também a de um catequista. A tradução que fez dos Salmos de David é cantada ainda hoje, senão nos templos católicos, ao menos nas igrejas protestantes do Brasil. Pela obra poética, podemos estimar o orador sacro, avaliarlhe os arroubos, medir-lhe as imagens, pesar-lhe a eloqüência. Vêde, por exemplo, este soneto em que descreve uma tempestade:

Tremei, humanos: toda a natureza,
Do seu Deus ao aceno convocada,
Sobre negros trovões surge sentada

Em cruel fúria contra nós acesa.
Do rosto seu escondem a beleza
Medonha escuridade acompanhada
De abrasadores raios, e pesada
Saraiva, que no ar estava presa.

Agora, perde a cor, de medo cheio
O monarca feliz e poderoso,
Que o vil orgulho abriga no seu seio.

Tu descoras também, ateu vaidoso,
E menos cego, sem achar esteio,
A mão que negas beijas duvidoso.

fonte:  academia.org.br

Um comentário:

  1. Muito bom, seu blogue. Voltarei sempre aqui para me abeberar de conhecimento. Peço uma visita a meu Noite em Paris, nesta mesma plataforma.

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