segunda-feira, fevereiro 25, 2019

O CORTEJO NA MADRUGADA: ROUBANDO PRA COMER!




O  CORTEJO  NA  MADRUGADA
                                                                                              M.  Costa



            A  notícia  corria.  Várias  pessoas  contavam  a  história.  Um  dia,  alguém  me  contou,  de  viva  voz.  Aconteceu    prás  bandas  da  Taperacima.  Talvez    pelo  tempo  de  932  ou  no  período  de  51 a 53,  quando  a  seca  foi  braba.  O  zunzum  se  espalhava  e  era  mais  ou  menos  assim.  Um  morador  da  região,  numa  madrugada  fria,  viu  uma  “visagem”.  O  susto  foi  muito  grande  e  não   foi  conferir  para  saber  o  que  era  na  verdade.  Na  escuridão,  ele  viu  um  cortejo,  que  tinha  apenas  dois  vultos  carregando  uma  rede  atravessada  num  pau.  Ele,  então,  se  perguntou  onde  seria  o  enterro,  se  por  ali  não  havia  cemitério?  Mas  enterro  àquela  hora?  Não  tinha  sentido  aquele  cortejo. Era  noite  escura,  um  breu  só,  e  de  quinta  para  sexta – feira quando,  diziam,  aparecia  o  lobisomem.  “Bateu  com  os  pés  na  bunda”  de  tanto  correr  com  medo. 
            E  a  notícia  começava  aí.  O  compadre,  em  conversa  na  casa  do  primeiro,  foi  o  segundo  a  saber  da  visagem  que  aparecia  na  estrada  da  zona  do  “tope”.  O  compadre, sem  dormir  no  meio  da  noite,  passou  o  relato  para  a  mulher de  casa  e  da  mulher  de  casa,  que  adora  um  espalhar  um  boato,  para  a  vizinha  e, assim,  de  boca  em  boca,  o  cortejo  ficava  famoso.  Como  disse  acima,  o  tempo  era  de  seca  feroz.  Faltava  de  tudo:  a  fome  era  grande  e  o  desespero  dos  rurícolas   pais  de  família  se  tornava  maior  a  cada  dia. 
              Em  32,  por  sinal,  o  interventor  de  Ubajara  2º. Tenente  do  Exercito  Ramiro  Antonio  de  Sousa,  decretou:  fica  expressamente proibida  a  saída  para  fora  deste  município,  enquanto  durarem  os  efeitos  da  atual  crise  climatérica,  de  qualquer  quantidade  de  feijão,  farinha,  milho,  arroz,  ou  outro  qualquer  gênero  de  primeira  necessidade,  produzido  ou  armazenado  no  mesmo”.  
             Bom,  até  aqui  nada  demais.  Mas  vai  que  João  Sem Medo  também  ouviu  a  estória  e  resolveu  tirar  satisfação,  saber  mesmo  o  que  que  era  a  tal  visagem  que  muitos  comentavam.  Sozinho,  numa  noite  qualquer, aprontou  o  cavalo,  botou  o  38  na  cintura  e,  nas  horas  em  que  se  comentavam  que  o  cortejo  aparecia,  para  a  estrada  tal,  se  dirigiu.  Apressou – se,  pois  queria  chegar  antes  ao  trecho. 
           Para  si  mesmo,  não  queria  aceitar  que estava   com  medo,  mas  estava.  Na  estrada  rumo  ao  local,  foi  pensando  em  tudo  o  que  poderia  ser.  Imaginou  muitas  coisas,  mas  como  tinha  dito  para  alguns  que  ia  “saber”  o  que  era  a  marmota,  não  podia  mais  voltar;  agora  era  ver  no que  ia  dar.  Andou,  andou  e,  enfim,  chegou  ao  ponto  onde  diziam  que  a  aparição  acontecia,  com  certa  frequência.  Eram  muitos  os  relatos  e,  sempre  que  alguém  contava,  aumentava  um  ponto.   Pronto.  Chegou  ao  local.  o  investigador  corajoso  procurou  um  escondido  atrás  de  uma  moita  alta  para  se  ocultar,  juntamente  com  seu  cavalo.  Ali  permaneceu,  sem  descer  da  montaria.  Nunca  se  sabe...  Qualquer  coisa..  Esperou.  Ouviu  um  barulho  vindo  da  estrada.  Pensou:    vindo.  É  agora!  Nada  apareceu.  Talvez  fosse  apenas  uma  raposa  madrugadora  ou  um  guaxinim  chupador  de  cana.  E  continua  a  espera.  E  o  medo,  este    aumentava. Passados  alguns  minutos,    após  a  meia  noite, o  cavalo  se  assustou  com  alguma  coisa.  O  cavaleiro   procurou  “afinar”  o  ouvido.  Vinha  de  longe  um  barulho. Parecia  que  havia  uma  conversa  curta.  E vinha  chegando  mais  perto.  A  lua  estava  na  sua  plenitude.  A  estrada  estava  clara  e  calma;  somente  se  ouvia  o  som  das  pisadas  e  as  vozes  sem  alteração,  quase  sussurros.  De  onde  estava,  o  seu  João  pôde  ver  o  “cortejo”  chegar  bem  pertinho  dele,  que    estava  “arrupiado”,  e  passar  rumo  a  lugar  nenhum.   Mesmo  com  medo,  deu  para  perceber  claramente  que  o  cortejo  era  formado  apenas  pelos   dois  carregadores  da  redinha  alva  que,  por  sinal,  parecia  bem  cheia.  O  defunto  não   era  pequeno,  pensou. 
       Agora    tinha  um  jeito:   descobrir  o  que  era  “aquilo”. Deixou  os  “cabras”  passarem,  enquanto  o  medo  ia  diminuindo.  Daí  a  pouco, quando  os  dois  chegaram  a  curva  na  estrada,  pôs  o  cavalo  no  encalço. E  foi  indo.  Aumentou  o  andar  do  animal  e  começou  a  se  aproximar  do  estranho  acontecimento.  Os  cabras  começaram  a  andar  com  mais  velocidade,  mesmo  com  o  peso  do  defunto.  O  cavaleiro,    vendo  que  “não  era  coisa  do  outro  mundo”,  como  diziam,  apressou  mais  o  passo  do  seu  animal  e,  chegando  cada  vez  mais  perto,  viu  a  rede  ser  largada,  atirada,  na  beira  da  estrada  vendo,  também  a  “carreira”  que  os  carregadores  da  rede  deram.  E  sumiram.  Com  medo  ainda,  o  Cavaleiro  desceu  do  cavalo  e,  com  o  revolver  em  punho  para  qualquer  coisa  que  acontecesse  naquela  hora,  se  dirigiu  ao  lugar  onde  a  redinha  estava  jogada. Ele  arrumou  então  mais  um  pouco  de  coragem  e  abriu  a  rede  e  o  que  viu??  Não  tinha  defunto  algum.  A  rede  estava  cheia  de  mandioca.
              Os  cabras  estavam  roubando  mandioca  na  região  para  fazer  farinha  na  noite seguinte  para  não  chamar  a  atenção.  A  farinha seria  usada  na  troca  por  outros  gêneros  para  dar  de  comer  aos  seus  familiares.  Era  tempo  de  miséria  grande,  provocada  pela   seca  cruel. 
           E  a  visagem  acabou  por    e  esta  estória  também.

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