quarta-feira, agosto 26, 2015

NOTÍCIA DOS INDIOS TABAJARAS, cantores


America Iracema: o violão eterno do último dos tabajaras

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Herundy 'Antenor' e Mussaperê 'Natalício' (o 'quarto'e o 'terceiro' de uma família tabajara)
Herundy ‘Antenor’ e Mussaperê ‘Natalício’ (o ‘quarto’e o ‘terceiro’ de uma família tabajara )
A saga de ‘Los Indios Tabajaras’
“…O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão fiel. A jandaia não quis deixar a terra onde repousava a amiga e senhora. O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?”
(José de Alencar, Iracema: Lenda do Ceará. Rio de janeiro 1865)
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O que evoca para você a expressão ‘Tabajara’? Alguma remota e quase extinta tribo indígena do Brasil? Ou seria um jocoso sinônimo de baixa qualidade, coisa mal feita, ruim, atributos aos quais a palavra passou a ser associada, depois daquelas piadas infames da turma do Casseta & Planeta: ‘Organizações Tabajara’, ‘Tabajara Futebol Clube’, etc., aquele negócio de apelidar de ‘Tabajara’ tudo que é coisa reles, imprestável enfim?
Só pra começar, fosse eu um tabajara também iria esbravejar revoltado, doido para tacar logo a borduna na cabeça destes desafetos sem mãe (e até mesmo o pobre do Bussunda, se vivo fosse, ia entrar no pau).
A gente até ri da piada, afinal nossa sociedade está mesmo cheia de coisas para serem zoadas, ricularizadas, mas convenhamos: é chato pra caramba, é mesmo triste e lamentável constatar que no Brasil banalizamos, principalmente o que é brasileiro. Uma cultura de banalidades indígenas, atrasadas, é isto que a palavra Tabajara nos evoca assim, no ato.
Um Brasil primitivo, brega, bugre, que o nosso pretenso cosmopolitismo quer esquecer.
Mas é só forçar a memória um pouco que a gente vai se lembrando daquelas palavras estranhas, exóticas, que íamos aprendendo logo nos primeiros anos de escola e que as pobres das professorinhas diziam para nós assim, cheias daquela presunção-rainha que as moças de terra de cego tem:
_”Palavras do ‘Tupi-Guarani’_ diziam elas, _” Um ‘dialeto’ falado por todos os índios do Brasil”.
Pagé, Tupã, buriti, jaçanã, Poti… Lembraram? Isto mesmo. Era um tupi-guarani tosco, escasso de valor linguístico, apenas uma meia dúzia de vocábulos soltos, pinçados pelo escritor José Alencar (nosso indianista mais fervoroso) no seu mui famoso romance indianista Iracema de 1865, escrito com intenções de reproduzir alguma língua ‘tabajara’ (agora sim, no mal sentido) que ele copiou de algum google de sua época, algum glossário apressado de termos da chamada Língua brasílica, um português colonial, castiço usado no interior do Brasil naquela ocasião.
Mas imaginem! São centenas as línguas faladas pelas inúmeras tribos de índios sobreviventes no Brasil de hoje, já depauperadas pela voracidade predatória dos brancos sim, claro, mas ainda assim línguas originais, dignas de algum dicionário, por menor que seja. Já pensaram a babel que era aquilo, aquela nossa selva quase intacta ainda, no século 19?
Mais lembrem um pouco mais e vejam que curioso: A língua principal destes índios míticos de Alencar –  o Tupi-Gurarani – seria, exatamente aquela falada pelos índios… ‘Tabajara’, do Ceará mais remoto e longínquo. É isto: Tabajara, segundo Alencar, um cearense orgulhoso de si, era um dos povos-matriz da ‘raça’ mestiça brasileira (pelo menos nesta parte de nossa praia biotípica já que ele não considerava ainda o negro como parte desta mestiçagem tão discutível).
“Martins Soares Moreno,
De cavalheiresco ardor,
Por amor à índia formosa,
Virgem de morena cor
Fundou a Pátria ditosa
da liberdade e do amor”
(Poema de Álvaro Martins)
A raça brasileira de Alencar se completava assim com a conjunção carnal entre o português Martim (baseado numa história de amor supostamente verídica vivida por um tal de Martins Soares Moreno) e a bela índia Iracema, uma legítima… tabajara (que – vejam que incrível! – segundo rezam algumas fontes, seria um anagrama de ‘America’)
I-R-A-C-E-M-A = A-M-E-R-I-C-A
Não é engraçado que o que para Alencar era a ‘verdade’ da formação de nossa nacionalidade esteja hoje tão associado a uma suposta ficção, uma eventual invenção anagramática?
Mas a verdade verdadeira mesmo é que, para sacramentar de vez a semgracice da generalização da piada de brasileiro, nem seria preciso ser índio para ficar revoltado não:
A palavra Tabajara além de ser o nome real desta valorosa e emblemática tribo do Brasil mais profundo, com marcas simbólicas tão fortes, de uma forma ou de outra, impregnadas na alma histórica do país, mais do que isto, Tabajara marca também – e não menos indelevelmente – a música do nosso mundo inteiro, imprimida pelo trabalho de uma dupla de músicos virtuoses, eméritos violonistas, cuja história impressionante honrará o nome de sua tribo – e a de seu país, o Brasil – para todo o sempre.
Quem levantou esta lebre foi o Marcus Vinicius Garcia, contando no último Das GroBe Kulture Seminar, emocionado a saga existencial e musical do duo violonístico ‘Os Irmãos Tabajaras’. Não sabiam disto não? Sabem que nem eu? Olhando agora mesmo na internet pude encontrar um mundo de informações sobre eles, a maioria, infelizmente oriunda de sites, revistas e jornais norte americanos.
Ouvindo as inúmeras gravações existentes das performances deles no Youtube, lembrei tão emocionado quanto Marcus, de músicas que tocando no rádio, marcaram a minha infância (como o hit Maria Elena, por exemplo, gravado em 1958 cuja letra de Lorenzo Barcelata dizia, romanticamente:….’Maria Elena és tu’…)
A versão instrumental desta música do duo Los Indios Tabajara é tão inesquecível que chega a ser quase um crime, em termos, que o nome destes artistas geniais não seja tão famoso por aqui quanto a gravação, que eu, ignorantemente sempre atribuí a algum violonista mexicano, cubano ou portoriquenho.
Um mexicano, um portoriquenho ou mesmo um cubano, em certas circunstancias, também são, de algum modo, índios. Mas o que nos importa mesmo é que os estes índios Tabajara, genios e heróis da música popular e erudita internacional (erudita sim, porque eles eram especializados, entre outros autores, em Chopin) são coisa nossa, índios do Brasil dos quais a gente devia muito e orgulhar, jamais ignorar ou desconhecer.
Mussapere ou Natalício Moreira Lima, o Nato Lima, o solista da dupla, o tabajara sobrevivente, aquele que tocou de forma genial a arte de seu violão até aproximadamente os 91 anos, morreu em Nova York em 2009.
Você havia ouvido falar disto? Pois bem. Esta é a impressionante história da travessia destes filhos de Iracema da selva tropical mais remota para a notoriedade artística na maior metrópole do mundo. A travessia de ‘Los Indios Tabajara’ foi, portanto uma descoberta da América.
Em toda história o começo é pelo fim
…”Na tarde do último domingo, 15 de novembro (2009), o violonista cearense Natalício “Nato” Lima, 91 anos, radicado há várias décadas nos Estados Unidos, perdeu a longa batalha contra um câncer de estômago. Ele estava internado no Katerina Nursing Home, em New York City.”
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Segundo todos os seus fascinados contadores a história de Los Indios Tabajaras é tão inacreditável que bem poderia ser uma história de cinema.  De todos estes contadores o mais feliz foram o próprio Nato Lima (Mussapere) e Luiz Nassif que conseguiu este fantástico depoimento dele, Mussapere-Nato, em 2004, por telefone, do qual publicamos aqui alguns trechos:
“Nasci na serra do Ibiapaba, entre Piauí e Ceará. Nesta serra, em 1929, existia Ubajara, cidade pequena, lugar famoso hoje. Naquela época não era. Um dia apareceu por lá uma tropa de militares, chefiada pelo tenente Hildebrando Moreira Lima.
Era muita gente e mudou nossa história. Não tínhamos cidade, éramos uma tribo mesmo, fomos criados na tribo Tabajara, morando em um terreno que não era nem Ceará nem Piauí, era uma área de litígio.
A tropa de militares foi para lá para amparar uma tropa que vinha do Piauí, de um lugar chamado Tucurutiba. Passaram por lá 20 dias. Fizemos amizade. Não éramos aqueles selvagens que todo mundo dizia que os índios eram. Nós estávamos a um quilômetro da beirada da serra.
Um dia meu pai saiu da aldeia e disse que viu um buraco enorme nos pé da serra. Nós estávamos na chapada e meu pai havia visto serra abaixo. Aí começou uma ventania, uma chuva e ele passou três dias ali. Quando voltou à tribo nossa, antiga, disse que nunca havia visto buraco tão grande. Viu lua sair do chão. Nós ficamos curiosos porque nunca vimos lua sair de lugar nenhum, apenas de trás das árvores.
Nós fomos em três irmãos até lá, chegamos lá e começamos a comer fruta enorme, besta, que não vale nada, chamada Ingá, maior que feijão e contém espécie de algodão em volta, muito doce, muito bom. Quando olhamos, vimos um violão, metemos a mão, fez aquele som, levamos um susto.
Levamos para tribo. Naquela época, os índios não deixavam ninguém chegar a menos de 600 metros dali. Vivíamos isolados. O violão causou transtorno na tribo. Havia outro som que escutávamos às seis da tarde, e não sabíamos o que era. Nós, pequenos, pensávamos que era violão. Era sino de cidade a uns 60 quilômetros dali, o sino de Ibiapina, assim chamada porque lá era terra completamente pelada.
Um dia um soldado levou flechada, era um soldado baiano, um mulatinho bonito. Os curadores da tribo curaram com infusões em menos de cinco minutos, uma espécie de leite que se faz da folha de uma árvore. Dois ou três pingos igual que leite. Depois de cinco minutos fica uma cola horrível. Nossos curadores curaram aquele soldado que caminhou na mesma hora. Os soldados ficaram muito admirados. Eles já tinham trazido caixão branco com cruz. Começou ali amizade entre ele e uma das meninas da tribo.
Quando soldados se foram começamos a sentir saudades do café, bolacha redonda de meio palmo e carne seca. Nós não conhecíamos, e também gostávamos da corneta dos corneteiros. Só tocava quando ordenado, mas algumas vezes tocava algumas coisas.
Eu tinha 8 ou 10 anos. Tribo tinha menos índios que soldados, que eram mais de mil. Nós éramos uns 700.
Diziam que meu pai era guerreiro ou chefe. Não era. Ele perdeu o colar de guerreiro, porque na tribo o guerreiro ganha aquele colar de dente de onça. E o pai perdeu por coisa incorreta que fez. Não permitiam nem que ele caçasse. Para casar necessita ser guerreiro. Como tinha casado antes de perder o colar, tinha 13 filhos.
A mãe estava grávida do 14º, todos homens, cada um com seu número no nome. Mas a gente dava número e não conseguia contar mais que cinco. Toda noite contava as estrelas e não passava de cinco.
Usavam muito medicina de mato. Eu gostava de comer barro e passava mal. Tinha vício daquilo e quase morri. Os curadores diziam que eu iria morrer daquilo, porque criava bicho na barriga.
Os militares foram embora, mas nos deixaram batizados. Padre que se chamava Magalhães, andava sempre de preto e se ajoelhava, a gente ficava admirado. Na cidade tinha gente de todas as cores, preto, branco, loiro, alguns com barba no rosto.
No Rio, começamos a tocar na rua. E nos jogavam algum dinheiro e a gente ia vivendo bem, mas dava muito vergonha porque éramos grandes, já.
Dali saímos a viajar no Circo, fomos a Belo Horizonte. Durante o dia fomos a um cassino e conhecemos artistas, o Alvarenga e Ranchinho. Até falei para a minha esposa que quer ir lá, porque tinha águas quentes…E fui também para Ouro Preto e Alto do Rio Doce. Chegamos a ir até a rádio Nacional, depois de voltar do Cassino da Pampulha.
Eu disse ao Alvarenga: agora nós temos um som de qualidade. Mas temos problema, porque o cassino em que vocês trabalham quer nos contratar, mas nós temos contrato com o circo, que não paga coisa nenhuma. Ele disse: “vocês vão me levar ao circo que falo com o dono e rompo com o contrato de vocês. Agora à noite, quando for tocar, vocês desafinam os dois violões e cantam muito ruim, o pior que vocês podem. O dono do circo vai ficar muito zangado”.
O dono do circo sabia que nós éramos dos índios e tínhamos estampa boa, mas não sabia que a gente cantava. O povo aplaudia por causa da roupa indígena e da simpatia, mas o talento era muito ruim.
No dia seguinte Alvarenga foi lá e disse que queria comprar os artistas. O dono: quanto você paga? Alvarenga: nós não pagamos grande coisa porque esses artistas não valem nada. O cara disse: um conto de réis.

“…Quando chegamos no México nos anunciaram: ‘Índios Tabajaras’, completamente ignorantes de música. Quem nos anunciou foi Ricardo Montalban, que não era conhecido na época. Era no Night Club El Pateo, cujo diretor era Miranda.
…Depois que escutei aquele negócio do Chopin, no outro dia sai para comprar música, comprei partitura de piano, ‘Clemente Partitura de Piano’ e ‘Compêndios de Moderna Harmonia de Rimsky-Korsakov’.
Um ano no México estudando dia e noite sozinho, sem professor, e aprendi a ler música. E examinei todas as músicas de Chopin,
Quando chegamos na RCA Vitor, diziam: são os maiores do mundo do violão. Ninguém acreditava nisso. Os violonistas não dizem quem é o maior, mundo é grande demais: mas eu acho que ninguém toca aquela valsa e o “Vôo do Besouro” que nem nós. Até hoje tocam nas reprises do Eddy Sullivan, a gente vestindo de índio, e eu ainda me admiro.
Ganhamos muitos milhões de dólares, mas nunca guardamos. Meu irmão faleceu oito anos atrás. Não era muito chegado aos sacrifícios da música. Nós temos que passar horas e horas. Música clássica leva muito tempo e, ademais, faço transcrição de piano para dois violões.
Na “Valsa em Dó Sustentido Menor” botei sexta corda grossa, tem som do piano. O mi, coloco em lá, igual à quinta corda. É uma guitarra de sete cordas, mas afinada em lá. A sexta dá som muito melhor que no piano. A última corda do piano é lá bemol, mas não tem som, não se sabe se é lá, é muito grave. No baixo sinfônico de quatro cordas, aquela nota se escuta. Mas no piano não.
O meu violão era um tom mais alto. É menor, o braço é mais curto, tem 26 trastes, que passam da boca do violão. São notas muito altas, igual ao piano e ao violino. Notas muito altas e o lá sustenido.
Todos os violonistas de Espanha daquela época, Regino De La Matta, o maior violonista espanhol, o crítico do Diário ABC de Madri, não quis ir ao concerto e não acreditava que índio pudesse tocar música clássica. Foi um sucesso. Teatro Lope de Vega, teatro elegante.
…Agora sou Nato Lima. Americano gosta de nome curto e ficou.
….Os maiores violonistas: conheci na Espanha o Regino. Os grandes daquele época não são os grandes de hoje. Hoje existem melhores. No Brasil tem alguns entre os maiores: Sérgio Abreu, os irmãos Assad, Turíbio Santos, também muito bom, e Barbosa Lima, que também é muito bom. E todos estiveram em casa, porque sou muito velho e eles pensam que vou morrer no próximo ano. Mas a gente de minha família vive muitos anos.
….Quando vim para cá me deram título americano, mas disseram que não queriam tirar minha nacionalidade porque sabiam que eu iria voltar ao Brasil. Tenho terras, irmãos lá. Eles me disseram: com título americano você tem uma vantagem: se você caçar na Amazônia e se você se perder lá, nós mandamos sete helicópteros para encontrar você.
Meu plano é ir morar no Brasil dentro de 3 anos. Mas a vida aqui é tão boa, uma moleza. O dinheiro chega do estrangeiro, e eu nem sei de onde vem, 43 países me mandam dinheiro de lá, e algumas vezes, nos últimos anos, tem engrossado.
Moro em frente da sociedade que arrecada dinheiro, perto do Central Park. Tenho 45 composições registradas. Tem tanto dinheiro que fico desconfiado.
Não fiquei milionário nunca porque nunca juntei dinheiro. Algumas vezes distribuí porque era muito. Hoje ganho 3 mil, 4 mil dólares por mês e é bastante. Às vezes recebo 9, 10 mil. Meu sonho é morar no mato, mas no dia em que encontrar terra, talvez no estado de São Paulo, entre São Paulo, Campinas, Jundiaí. Quero 10 alqueires”.
Nosso repertório é de música popular de acordo com o gosto do povo. Nós somos brasileiros, mas tocamos de acordo com o gosto do povo, para vender disco, para ter dinheiro para comer, trocar roupa. Aqui nos EUA estamos rodeados de países espanhóis. Se colocar só música brasileira, não vende. “
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Em 1920 Mussapere e Herundi eram dois indiozinhos nascidos numa aldeia tabajara no interior do Ceará, Brasil. Seus nomes são números, segundo a  ordem de nascimento. Mussapere ‘Nato Moreyra Lima’, o ‘terceiro’ filho daquela família tabajara não é, mas poderia ser chamado hoje sim de ‘O último dos Tabajaras’.
fonte:  wordpress.spiritosanto.com  visita:26agost2015.

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